“A nossa interação social surge a partir dos propósitos individuais que incluem, entre outros, os interesses de poder, vaidade e riqueza”, disse, certa vez, o sociólogo alemão Georg Simmel, que viveu até os anos de 1918. Vejo essa lúcida fala dele como um apontamento essencial para entender as lógicas de uso e apropriação desses espaços online que protagonizam boa parte de nosso dia hoje: os avassaladores, potentes, onipresentes e complexos sites de redes sociais.

Nas nossas práticas cotidianas, os aplicativos de redes sociais fazem parte de nossas vidas de uma forma cada vez mais íntima. Antes de dormir, sempre damos aquela última olhada no visor do celular (como se já não tivesse sido suficiente ter feito esse ato centenas de vezes ao dia), acionamos o alarme sonoro para acordarmos cedo na manhã seguinte e vamos dormir. Despertamos pela manhã e, ainda meio entorpecidos por Morfeu, já esticamos o braço e pegamos nosso inseparável smartphone. Afinal, antes de irmos ao banheiro para nossos habituais e compulsórios afazeres fisiológicos, não podemos começar nosso dia sem uma prática igualmente obrigatória: dar uma checada nas notificações do Facebook, nas mensagens do Whatsapp e verificar quem curtiu nossa última foto do Instagram. Feito isso, pronto! Podemos começar mais um dia.

Os chamados gadgets, como o iPhone da Apple, o Samsung Galaxy, o nosso iPad, iPod, a GoPro, surgiram nos últimos anos e alcançam hoje volumes de vendas exponenciais. Muito mais que meros aparatos tecnológicos, eles adquirem uma carga simbólica e fazem parte da vida dos consumidores contemporâneos, sobretudo os jovens, contribuindo para a formação de uma identidade social. Afinal, quando as pessoas compram um iPhone, por exemplo, estão não apenas adquirindo um aparato tecnológico, como também vivenciando certo estilo de vida e se inscrevendo num imaginário tecnológico que enfatiza as ideias de inovação, elegância e distinção econômica”, disse certa vez Erick Felinto, pesquisador da UERJ.

Já o antropólogo Néstor García Canclini argumenta que “no limite, chega-se a fenômenos de autismo e desconexão social, devido às pessoas preferirem antes ficar na frente da tela do que relacionar-se com interlocutores em lugares fisicamente localizados. Conectividade não é sinônimo de interatividade”. Ou seja, não é porque estamos conectados que estamos necessariamente interagindo com outros usuários. Aqui, nota-se que o pesquisador, que vive hoje no México, entende que o efeito dessa disseminação de novos ambientes virtuais pode ser nocivo ao processo de ensino-aprendizagem de jovens, pois “cada vez se lê menos livros e mais xerox de capítulos isolados, textos curtos obtidos na internet, que comprimem a informação. Diminuem os “leitores fortes”, enquanto aumentam os “leitores fracos” ou “precários”, pondera o antropólogo em uma de suas mais brilhantes obras, “Leitores, espectadores e internautas”.

É em virtude disso que evidencia-se o fechamento de livrarias, pois os jovens estão lendo menos e com novos parâmetros de comportamento. Anos atrás, por exemplo, a Borders (até então, a segunda maior livraria dos Estados Unidos) entrou em falência. O ato de ler perde valor em uma vida rodeada por telas e aqui entende-se melhor o magnetismo dos míseros cento e quarenta caracteres que norteiam as conversas e interações no microblog Twitter, por exemplo.

“Eu sei que deveria, mas isso não vai acontecer. Se eu receber uma mensagem no Facebook ou algo postado no meu mural, eu tenho que ver isso. Tenho que ver”. Eis o depoimento de Roman, um jovem de 18 anos, extraído do livro “Alone Together”, da psicóloga do MIT Sherry Turkle, ao admitir que envia mensagens de texto enquanto dirige seu carro, e diz que não vai parar. Nas redes sociais, parece que encontramos um local que sempre procurávamos. Ali podemos organizar nossos contatos e nos confortamos com a conveniência de estarmos em contato com um número enorme de pessoas (todos cirurgicamente mantidas à distância). Mas não é possível ter uma relação boa se usarmos a tecnologia para nos mantermos separados por distâncias controladas: nem perto demais, nem longe demais, no ponto certo. Aliás, esse é um alerta importante que a psicóloga do MIT nos faz. Afinal, mensagens de texto, e-mails e atualizações de status permitem que mostremos o “eu” que desejamos ser. Isso significa que podemos editar. E, se quisermos, podemos deletar. Ou retocar: a voz, a carne, o rosto, o corpo. Nem muito, nem pouco – na medida certa.

Ao analisarmos de um modo mais reflexivo todo esse manancial de novos espaços sociais, o que nos fica evidente é que cada rede social apresenta potenciais que lhe são próprios, por exemplo as especificidades do Instagram em relação ao Facebook, e este em relação ao Twitter ou ao Whatsapp, embora todas as redes sociais tenham um fio condutor marcado pela forma como as pessoas se apropriam desses espaços.

Quer entender as lógicas dessas apropriações? Vá entender o ser humano primeiro. E foi o que fiz nos últimos dois anos, quando fui estudar a forma como jovens estudantes constroem sua identidade por meio do Facebook. Percebi que para entender essas estratégias identitárias, seria preciso entender antes como se dá o processo de formação da identidade de um indivíduo. Deixei as redes sociais de lado. Por exemplo, fui tentar achar respostas no campo da comunicação, onde uma parte significativa dos estudos relacionados aos sites de redes sociais digitais vai buscar fundamentos nos estudos de Erving Goffman e a corrente do interacionismo simbólico, surgida na Escola de Chicago no início do século passado.

Goffman vai explicar que geralmente as pessoas esperam que haja uma “compatibilidade” entre quem nós realmente somos e a nossa aparência, mas sabemos que nem sempre isso ocorre (como quando alguém de altíssimo status social age de modo igualitário ou humilde com atores sociais de status menos proeminente). A aparência está, então, para o status social assim como a maneira está para os gestos e ações do ator social.

Nos sites de redes sociais digitais, as ações dos usuários ficam visíveis e expostas, sendo passíveis de serem analisadas. A aparência (tangibilizada em símbolos que indicam status, gestos expressivos e insinuações, por exemplo) torna-se elemento fundamental na interação social para que o indivíduo possa tentar prever minimamente com quem e com qual situação está lidando, conforme explica Goffman, quando disse que para descobrir inteiramente a natureza real de uma situação, seria necessário que o indivíduo conhecesse todos os dados sociais importantes relativos aos outros, assim como os mais íntimos sentimentos deles a seu respeito. Raramente se consegue completa informação dessa ordem. Na falta dela, o indivíduo tende a empregar substitutos – deixas, provas, insinuações, gestos expressivos, símbolos de status, etc. – como recursos para a previsão. (…) Paradoxalmente, quanto mais o indivíduo se interessa pela realidade inacessível à percepção, tanto mais tem de concentrar a atenção nas aparências.

Foto: Erico Hiller/ @ericohiller

Desse modo, a aparência não deve ser vista em oposição a uma suposta essência dos indivíduos, mas sim como um dos relevantes fatores que podem ser indicativos de que um indivíduo deseja ser visto e de como constrói sua identidade. O que se deixa à mostra nos sites de redes sociais digitais é fundamental para que se possa conhecer melhor as pessoas, como defendemos, em um lugar no qual não se pode contar com a presença do corpo físico. No entanto, nota-se também que nesses espaços virtuais há um jogo entre o “ser você mesmo” e o ajustar-se aos diversos ambientes sociais, o que nos interessa para pensar que tipos de estratégias são adotadas, ou seja, como determinados elementos discursivos são elencados para compor os perfis identitários e por que isso ocorre.

Essas estratégias efetuadas visam à adaptação a diferentes situações, buscando manter a “coerência da autoidentidade”, e passam pelo que Goffman chama de “manipulação da impressão”. Tanto a dimensão cultural (língua e comportamento, por exemplo) quanto a material (como roupas, acessórios e os próprios corpos dos atores sociais) dessa impressão são igualmente relevantes. A importância ocorre por seu valor simbólico, pelo que significam e pelo que comunicam sobre a construção de identidade que se busca fazer, tanto na vida off-line, ou seja, na vida como ela realmente é. E também nos sites de redes sociais.

Quando imprimimos nosso olhar para esses novos ambientes discursivos, pode-se observar inúmeras facetas como, entre elas, as múltiplas identidades que se pode adotar nesses espaços plurais e possibilidade do anonimato. O mundo online provoca atração dos usuários, pois não carrega as exigências do relacionamento pessoal. Ao evidenciarmos o comportamento de cibernautas em usos cotidianos dessas plataformas, vemos que boa parcela de pessoas preferem desejar a um outro usuário palavras de feliz aniversario com mais frequência pela rede social do que por meio de contato telefônico ou pessoal.

O que são afinal as redes sociais digitais? Como se dão as estratégias de uso e apropriação desses espaços virtuais? Por que as pessoas constroem modo de apresentação de si na cena digital que destoam de sua persona offline? É com base em tais questões que me arrisco a debruçar. Sem pretender aprofundar na seara da psicanalítica, porém tomando emprestada a sua principal contribuição para o entendimento das complexas motivações do comportamento humano, podemos dizer que de modo consciente ou inconscientemente cada pessoa usuário desenvolve uma série de estratégias de apropriação de um site de rede social digital como o Facebook.

Quem está certo e quem está errado nesse palco? Quem usa bem e quem usa mal as novas, magnéticas e sedutoras ferramentas digitais? Quem é mais competente e quem é menos competente em suas escolhas sobre o tipo de conteúdo que irá produzir e tornar público nos ambientes online? Não nos cabe oferecer simples respostas para essas perguntas. Devemos analisar e entender essas estratégias discursivas com o foco bem ajustado, conferindo-lhe o devido tamanho, sem euforia contida na retórica da “revolução” digital, porém com serenidade, rigor e sensatez. Mais importante ainda, interessa proceder essa análise procurando sempre entender o mais claramente possível o contexto sociocultural de cada usuário do Facebook.

Espero, com minhas pesquisas, sempre contribuir para os debates sobre a construção identitária nos sites de redes sociais digitais. Entendo que nunca ofereço conclusões definitivas sobre as questões  que me inquietam, mas empreendo sempre um fértil debate pelos complexos, difusos, incompletos e dinâmicos modos de apresentação de si nos sites de redes sociais. Continuo sempre mergulhando nessas águas, já não tão turvas e agitadas como estavam anos atrás. Na verdade, percebo hoje que não se trata de um mar, mas de um oceano.

De que modo a forma com que nos apropriamos desses espaços está impactando as lógicas dos afetos? Quais seriam os efeitos danosos do uso irrefreado de sites de redes sociais? Até que ponto poderia se afirmar que as interações em aplicativos como Facebook, Instagram e Whatssup intensificariam realmente essa espécie de autismo e desconexão social nas pessoas? Essas são questões candentes, inquietações que levaram estudiosos como Sherry Turkle a considerar que estamos “alone together” nas redes sociais digitais. Para revitalizar nossos vínculos afetivos interpessoais, a autora propõe um regime de desintoxicação por meio de abstinência digital. Embora considere um tanto radical a perspectiva adotada por Turkle, a julgar pelos resultados de minhas recentes pesquisas, entendo que os efeitos de longo prazo de nossas interações mediadas por computador necessitem ainda de muito estudo. Fui picado pela mosca Tse-Tse da paixão pela pesquisa dos sites de redes sociais e por isso o desafio não me desanima.

 

Por Marcos Hiller, é mestre em comunicação e consumo pela ESPM. Pesquisador nas áreas de redes sociais, branding e cultura digital, Hiller ministra palestras pelo Brasil e exterior sobre temas inquietantes desse ecossistema digital que habitamos.